terça-feira, 5 de agosto de 2008
Ali, nos Botequins das Maravilhas
Confesso que esse meu olho esquerdo encontra-se um tanto rígido, quase sólido, eu diria. A parafernalha tecnológica sempre me deu um pouco de brotoeja, mas meu
desempenho, em contrapartida, têm sido satisfatório. Não estou aqui, entretanto, para discutir o desgaste a mim impelido por longos anos de batalha. Na verdade, e deleitando-me com um bom cigarro aromatizado pelas doçuras míticas das cerejas, vou relembrar uma aventura atemporal. Aqui, oculto por estas caixas velhas e com odor explícito de oxidação, pretendo sorrir como a tempos o dever não permite, muito sutilmente, lógico, afinal, não desejo que ratos uniformizados me sigam como uma pobre raposa, ou, por assim dizer, como as águias caçam as cobras.
O jovem sentia-se deprimido naqueles últimos dias de trabalho. Sabia que o abismo do "por quê?" continuaria a assolar seus humildes e sinceros pensamentos hedonistas. Era preciso ganhar dinheiro para que o ritual sagrado de todas as sextas-feiras pudesse se repetir. A mística confraternização, pois, só era necessária porque era preciso trabalhar. Curioso, não? Ao fim daqueles três meses de um tédio pulsante que a cada dia se agigantava frente às perspectivas vazias da mente sem referências, a iminência
do fim, era prazerosa, muito prazerosa. Não obstante, quanto mais sofrimento, mais oportunos os rituais se tornavam.
Eis que, na última noite de devaneios digitais corporativos, eu me encontrei com
uma pomposa e promíscua quantidade de cédulas em minha mão esquerda, já que com a direita, apertava a mão de meu ex-chefe, uma criatura sisuda, que certamente não desejava ver aquele prodígio da pró-atividade nas próximas cinco aparições do Messias.
Saí num galope furioso, uma fúria de contentamento, que me levou ao encontro dos antigos espíritos da fanfarra, e dessa maneira, fanfarrarmo-no-íamos com toda a graça de um gambá.
O circuito foi demasiadamente intenso, e a zona sul da cidade não foi mais que um receptáculo do descontrole e da sedução pasteurizada. Primeiro, o covil do João: cerveja barata, homens fétidos, e uma sensação agradabilíssima de que absolutamente tudo ia acabar muito mal. De repente, lembrei-me: havia algo potente em meu bolso, uma luxuria modesta, se é que isso existe. Ali se encontravam algumas pílulas responsáveis por emitir pulsos biocibernéticos de conversão bipolar aguda, o frenesí
adolescente usado por Morpheus como o caminho para a libertação mecânica de Matrix.
Tomei. Tomamos. Meus companheiros de aventura sentiram-se obrigados a experimentar tal sensação de androgenia plástica proporcionada pelo condensado de esforços farmacêuticos. A droga não surtiu efeito algum, e na derradeira loucura pela viagem astral, consumimos toda a cartela de Benflogin. Mais uma caminhada rumo ao extremo, nos dirigimos ao aconchegante Amada, o Amadeu que todos conhecem pela receptiva placa onde jaz um peixe morto, daqueles de desenhos do Pica-Pau. Lá a extravagância de mentes insanas foi recompensada com louvores ébrios que cometiam atrocidades etílicas , tal como nós.
Eu tornei-me um músico de praças distantes, sério. E desculpando-me com a alegre plateia, novamente, por estar sofrendo de Insuficiência Sóbria, eu disse que não iria cantar, ora, pois não lembrava das letras. E assim meus amigos, músicos de fato, resolveram escancarar os ouvidos de todos os párocos com melodias de outrora, e de outrem. Refestelamo-nos com as bebidas que chegavam à mesa como gesto de gratidão plena, e de cortejo. Por fim, o momento crucial daquela noite, por pouco, inenarrável: era hora de retornamos ao lar, mas eu não me encontrava em condições de pronunciar uma palavra monossílaba, quiçá, adentrar meu lar sem consequências absurdas e a possibilidade da eterna hemodiálise. Os bravos guerreiros que me acompanhavam travaram uma pequena batalha com a gravidade, afim de me carregar nos ombros, já anestesiados pelo suco da vitória efêmera.
Conseguiram, todos, chegar aos portões da grande fortaleza trentina: a casa de minha família. O grande obstáculo: o portão. Com as mãos a tirar coisa alguma dos bolsos, exceto por alguns fiapos e facas, revelei a triste verdade aos meus amigos: perdi minha chave...
Na face dos heróis, medo, e também uma leve ira contra este que lhes fala. Pulamos o muro com a tenacidade que a juventude nos presenteara, e assim, metros depois, a barreira era mais compacta, mas não menos intransponível. Tínhamos a porta de madeira logo ali. Senti um anjo descer. O baque foi tão grande a ponto de me fazer imaginar que o coitado se encontrava disposto a nos ajudar a carregar aquele fardo, e se aproximava com delicadeza para nos ajudar. Pobre criatura celestial, de certo que esbarrou numa nuvem carregada de pestilências hostis com sabor de álcool. E sobre mim desabou. Foi assim que lembrei que em minha calça havia dois bolsos, e não apenas um, viva! Tirei a chave do bolso, e a mostrei pra meus comparsas. A expressão dos bravos homens foi impagável.
Bem, só lembro de alguns vultos correndo pelos "corredores" moribundos de minha morada, falavam alto, e a ansiedade pairava no ar. Deitaram-me. Levantei. Queria mais. Obrigaram-me a deitar. Por fim, criaturas furtivas pulando minha janela a meu pedido, para que o barulho não deturpasse o sono de meus consanguíneos, em seguida, levantei-me para fechar o portão. Me despedi dos amigos que me olhavam como cães, famintos por vingança, olham uma lebre serelepe. Não entendi o porquê, eu não havia feito nada de mais. E assim, uns dois dias depois, voltamos a nos reunir para celebrar a inconsequência. A água imperou.
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